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Mergulhada na penumbra, ao fundo do atelier, uma extensa prateleira transborda. Objetos, materiais semi-destruidos, fragmentos e detritos de coisas que, de tantas perdas, perderam também sua identidade, de tanto se conjugarem, criaram novos sentidos. Acomodaram-se em seus lugares, imunes à saturação exterior, para cumprir, em silêncio e aparente imobilidade, seu compulsório destino. Res antiquissimae, que a atenção do artista – mais afetiva do que seletiva – foi reunindo ao longo dos anos, ali se transformaram em símbolos e arquétipos, e agora, nas linhas da estante, constroem em texto, uma história.

 

São testemunhos e substância dos dias que se contavam vagarosamente; as coisas que, acumulando a poeira do perdido, fazem ressoar, do fundo da memória, aqueles outros dias interiores, consumidos, que a este iluminam em obra de prestidigitação. Saber sua presença, já é experimentar a vida continuum, é capitalizar a riqueza interior com que construímos nossos aparelhos de percepção do mundo. Lá, naquele território densamente ocupado, as coisas na verdade estão vivas. E pulsam, em espera tensa, como que “conscientes”, anunciando outros sentidos delas vagarosamente porejam e se derramam pelo espaço da memória.

 

Na linha fronteiriça entre as coisas reais e as imaginadas, o desenho e a pintura de Marco Túlio Resende definem esse outro espaço, o lugar onde tudo é premência e iminência, lugar da lucidez e do desejo (da paixão), onde o artista grava sua poética iluminada experiência antecipada do futuro, que lhe permite detonar e pulverizar o sentimento de catástrofe que hoje imanta o mundo.Hábeas Corpus – declara Marco Túlio, no título de um de seus livros-objetos. “Tens o corpo”, e todas as sanções que lhe infringe a autoconsciência, a consciência desventurada, devem ser denunciadas e comutadas. A consciência que desenha o limite das suas faltas, impulsiona o artista para a experiência mais profunda, que o faz descartar a simples exibição de seu saber, para, com esse domínio do oficio, buscar um sentido, não do fazer, mas do ser.

 

Desde há muito, a obra de Marco Túlio se dispõe como texto progressivo, sempre a somar – com extratos da memória – sua história feita de intuições, que se enredam numa intrincada malha de acasos provocados. A principio, sua atenção concentrava-se nos relevos do cotidiano, na constelação de objetos e materiais que crispavam nosso olhar urbano. Refugados e humilhados, os resíduos descartados de seu uso natural, que o artista transformava em signos, para compor – por uma articulação precisa de cor, matéria, forma – um signódromo, depósito de sinais que conduziriam em suspensão pelas vias ásperas da rotina, ajudando-nos a redimir-nos do sentimento da perda produzido pela evidência dessas inutilidades que se acumulam, como cerco cruel, em torno de nós.No texto atual, construído com outros signos que são pré-figurações das coisas, projetadas desde o passado, - lá onde se gestam os mitos – fluem outras imagens, ora precisas, ora veladas; umas como substância da forma, outras, o vazio, a sua falta e sua sombra.

 

O corpo que temos, feitos de soma e subtrações: escultura; lapidação, corrosão, ou a construção; contração, concentração, expansão e dispersão; densidade e transparência. Espantado diálogo entre o sim e o não: porém, sempre se gravará em um, a tatuagem do outro.Nos livros-objetos, construídos com pinturas e desenhos, cada página que se passa é reiteração desse sentimento do tempo promulgado – e o gesto que de passa-las lentamente constitui uma aventura profundamente dolorosa e ao mesmo tempo venturosa. Porque Marco Túlio vai escrevendo sua própria história, e a dos dias e sua substância trágica e magnífica. É preciso uma concentração enorme para seguir cada uma das suas horas ali gravadas e prosseguir na sua lenta leitura. Se vemos desenhados na superfície das páginas, osso, martelo, torre, mão, cravo, flor, a tinta que tinha ressalta essas formas, diz terra, labor, sangue, desejo, desistência, e mais a diante, afirma seiva, fruto, divino, luz. Essa amorosa combinação que extrai a cada tempo, descortina paisagens, vivências; anuncia perdas, medos, e ao fim assina nosso compulsório duplo contrato com Deus e Mefistófeles, do qual resultará uma juventude retomada e que, provada na maturidade, desejamos a todo custo preservar.

 

É desse corpo do Humano anunciado nas páginas dos livros, que se projetam nas grandes telas as imagens feitas objetos, mas estes apenas se enunciam como sombras, longínquas sobras repetidas, recorrentes. Pois não são, senão, figuras divisadas na terceira face do espelho, onde tudo ao se dispersar mais se concentra? Nesse lugar que se chama Arte, onde as coisas, todas as coisas, recortadas e dadas pelo coração, se fazem em acordo na fundação de tudo que se persiste em nós, como ponto e estame de religação com o divino, construindo a possibilidade de explicação do inexplicável. Essas coisas que, de tão existidas, desistem e se desfazem, para permitir ao artista, na maturidade, recompor o sentido de sua presença – em última instância estão ali como confirmação de nossa permanência mais além do porto transitório da História.

 

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